Mário Prata Vender um carro não é tão difícil assim. O problema é que agora inventaram que a gente tem de ir ao cartório. Assinar lá aquele papelzinho e o sujeito reconhecer a firma da gente. Não adianta mandar ninguém. Tem de ser a gente. Pois é. Vendi o meu carro e lá fui eu, na quarta passada, reconhecer a minha firma, palavra pomposa para a nossa humilde assinatura. Assinei na cara do sujeito e entreguei. Me pediu a carteira de identidade. Meu Deus, esqueci. Tento quebrar o galho. — Sem a carteira de identidade não tem possibilidade. — Meu amigo, está chovendo, foi uma luta estacionar o carro e... — Impossível. O senhor não viu escrito ali? Foi quando eu me lembrei do Estadão que estava debaixo do braço. Minha coluna, minha foto. Mostro para ele. — Está vendo? Sou eu. Olhou para a foto, olhou para mim. — Reconheceu? — É, reconheci. Mas, para reconhecer a firma, só com a identidade. É lei, olha a fila, meu senhor. — Meu amigo, a carteira de identidade é para provar que eu sou eu, não é? Pois eu acabo de provar que eu sou eu. Ou não? — Eu sei que o senhor é o senhor, mas não adianta. Olha a fila. — Posso falar com o seu chefe? — Não vai adiantar. É aquele. O de peruca. Seu Wilson. Caminho na direção do seu Wilson. De longe, já começo a analisar a peruca dele. Peruca de homem, não sei por que, sempre me fascina. Me dá uma vontade quase incontrolável de arrancar, de fazer com que todo mundo em volta ria. Vou olhando em volta. O cartório evoluiu muito. Agora está cheio de computadores. Tá "muderno". Numa mesa a Dulce, a Dudu e o Ferreira (gripadíssimo) dominam o computador para, logo em seguida, bater o carimbo. O carimbo! Céus, quando é que o burocrata vai livrar-se do carimbo? Fico olhando o trabalho da Dulce enquanto o da peruca atende uma senhora de laquê, muito nervosa. Conto: a Dulce bateu 93 vezes o carimbo em um minuto. Isso é que é funcionária! Mais ou menos uma e meia carimbada por segundo. Está noiva, a Dulce. Seu Wilson era inteirinho cinza. Ia do cinza claro do terno até o cinza escuro da olheira. Seu Wilson estava conversando com a de laquê, me olhando de lado. Chega a minha vez. Ele: — Conheço o senhor de algum lugar. O senhor já não foi no programa do Jô? — Meu nome é Mário Prata e... — Claro, do Estadão. Reconheci o senhor assim que vi o senhor entrando. Qual é o problema, Marinho? Odeio que me chamem de Marinho. Mas como havia sido reconhecido, tudo bem. — É o seguinte, seu Wilson. Vim reconhecer a assinatura da venda do carro e não trouxe a carteira de identidade e... — lh... — Mas como o senhor me reconheceu, pode reconhecer também a minha assinatura. — É, mas só que, pra reconhecer a assinatura, eu preciso da sua carteira de identidade. É uma questão legal. — Legal, né? Sentei. — Seu Wilson, acompanhe o meu raciocínio. — Pois não. — O senhor precisa da minha carteira de identidade para ter certeza de que eu sou eu, não é isso? — Exatamente, Marinho. — Mário, por favor. Mário Alberto Campos de Morais Prata. Então, continuando, se o senhor sabe que eu sou eu, acho que a gente podia deixar a carteira de identidade pra lá. — Veja, Mário Alberto (piorou!), quando o decreto saiu no Diário Oficial... — Tudo bem, tudo bem. Mas me diga, seu Wilson: quem sou eu (aliás uma pergunta que me tenho feito muito: quem sou eu)? — O senhor é o Mário Prata. — O senhor reconhece isso? — O senhor está querendo me pegar, não é? Olha, Campos, agora não posso mais. O meu funcionário, entende? Eu não posso passar por cima dele, tirar a autoridade dele. Se o senhor tivesse me procurado antes, aí sim, talvez... Fiquei me segurando para não arrancar a peruca dele e colocar fogo. Estava com o isqueiro aceso. Acendi o cigarro, pensei no meu avô Mario que tinha cartório em Uberaba. Pensei em Jesus pensando nos pobres de espírito, pensei no Brasil, pensei na mãe do seu Wilson, pensei que eu não era mais eu. Liguei para a Isabela, que ia comprar o meu carro. — Isabela, desisti. Descobri que eu não existo, Isabela. E fui para o divã do dr. Leonardo Ramos, que tem de carimbar a receita para que eu possa comprar Lexotan. O texto acima foi extraído do jornal "O Estado de São Paulo", edição de 03 de junho de 1998.
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