De Mario PRATA RECANTO DAS TONINHAS - Terminado o livro, dei-me o direito de uma semana na praia. Não sem antes passar no contador, o clássico Nivaldo, para o acerto anual com os impostos. E, todo ano, eu tenho vontade de não declarar, sonegar mesmo! E você vai me dar razão. Sabe aquela lista imensa de profissões? Lá não tem a minha. Portanto, para o Brasil, eu não existo. Tem profissão lá que eu nem sei o que o cara pode fazer. Mas, escritor, que é bom, não tem. Então, se a minha profissão não existe para a União, eu também não existo. Certo? E querem que eu declare que existo e mais, que pague tudo direitinho. Mas declarei tudo direitinho. Os depósitos no exterior em dólares (como os deputados, profissionais), aquele dinheirinho que eu recebi por fora, não declarei. Estou lavando ele para comprar uma cobertura em Miami. Desde que meu genro não fique sabendo. O dinheiro que eu extorco (fui ao dicionário ver se era assim ou estorquo e, pasmo, descobri que o verbo extorquir não se conjuga na primeiro pessoa do singular - já, no plural, sim. Só se for no Primeiro Mundo porque aqui USA no singular, sim), o dinheiro que eu extorco do cara que tem uma banca lá na frente da minha casa, também não declarei. Muito menos a ajuda de moradia e roupas que a ABL me fornece anualmente, declarei. Nem o carro para levar os meus filhos à escola, eu declarei. O resto, a arraia miúda - como diriam aqui na praia -, tá tudo lá. Claro que o apartamento a um preço mais baixo, o carro idem e quase menti sobre gastos médicos, que eu pago todo mês, mas sempre que preciso, exatamente aquilo, eles não pagam. Com você também não é assim? Admiro muito a esperteza (a curto prazo) do povo brasileiro. Venho aqui para o hotel e, quando escrevo no papelzinho da entrada profissão escritor, leio o pensamento da simpática recepcionista: metido... Estou aqui rodeado de convenções. Hoje de manhã uma mocinha, bem convencional, de uma convenção de informática, me perguntou de qual convenção eu era. Disse que era da convenção dos escritores e senti que ela não acreditou. Tentei uma segunda: estou em convenção comigo mesmo. Ela não entendeu. Tá difícil o nível aqui, como convém. Sei que não é nada convencional ficar na beira da praia bisbilhotando convenções alheias. Mas sou um profissional, já disse. Profissional da curiosidade. Tenho curiosidade por essas pessoas que conseguem trabalhar juntas. Ficam lá na salinha ouvindo o chefe ensinar, pasmas. Como prestam atenção! Tem tanta coisa boa pra se aprender na vida e ela aprendendo logo aquilo? Será que quando ela voltar, ainda com o barulho do mar lá fora, vai perguntar para o namorado, toda cheia de sabedoria: - Você sabe o que aconteceu com o Dow Jones? E se o namorado disser que nem sabe quem é esse sujeito, vai dançar. As convenções existem é pra isso. Como seria uma convenção de escritores? Uma fogueira de vaidades? Testemunhas de acusação? Um álbum de família? A mãe? O filho pródigo? Um encontro marcado? Um jogo de amarelinha? Uma alquimia? Ou seria uma utopia e uma peste? Estou aqui brincando comigo mesmo e com você, mas a coisa é séria. Os escritores precisam começar a se organizar pra alguém perceber que a gente existe. Outro dia o Fantástico (da Globo!) me pediu para escrever um texto na "base da colaboração", o Clube Atlético Paulistano me convidou para uma palestra, mas não podia ir de tênis. Nem para assistir. Não fui. Enfim, ninguém respeita o escritor. Portanto, fica aqui uma convocação para uma convenção anual de escritores. Será que a Academia Brasileira de Letras ou a Câmara do Livro não podiam reservar um hotel cinco-estrelas para a gente se reunir e, pelo menos, contar quem a gente tá namorando? Fico imaginando ali na sala de baixo o João Ubaldo, o Veríssimo, o Lauro César, o Fernando Sabino, o Ziraldo, o Fernando Morais, o Chico Buarque, a Patrícia Mello, a Stella Florence, o Millôr Fernandes, a Regina Rheda, a Lygia Fagundes Telles, eu e mais tantos a discutir sabe o quê? O índice Dow Jones. E, depois, mandando uma carta para o meu querido Everardo Maciel pedindo que coloque a nossa profissão lá e - sou brasileiro - nos isente. Nos isente, meu querido, de passar esta vergonha de não sermos considerados escritores em nosso próprio País. O Saramago já provou ao mundo com uma certa pasmaceira, mas provou que a nossa língua existe. E paga Imposto de Renda. Morro de vergonha de ser apenas um assemelhado escrivinhador. E fico aqui, na praia, numa convenção comigo mesmo, à procura dos meus assemelhados dessemelhantes: 202 Vereador, 213 Fiscal, 291 Ocupante de cargo de direção e Assessoramento intermediário, 295 Militar em geral, 393 Recepcionista, 491 Demonstrador, 492 Modelo de modas, 501 Porteiro de edifício, 521 Governanta de hotel, 533 Contramestre de embarcações, 544 Instalador de esgoto, 598 Empregado doméstico, 706 Trabalhador de tratamento de fumo, 907 Capitalista e, por fim, 949 Espólio. Texto extraído do jornal "O Estado de São Paulo", de 28/04/99
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